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Modulação da Coisa Julgada - O STF mudando o passado







Em 8 de fevereiro de 2023 a comunidade jurídica e o mercado foram surpreendidos com uma bomba advinda da corte suprema: "STF permite anulação de decisão tributária definitiva sem modulação de efeitos". Essa foi a manchete que assombrou os meios de comunicação sobre o julgamento dos Temas 885 (RE 955.227, relator ministro Barroso) e 881 (RE 949.297, relator ministro Fachin) em sede de Repercussão Geral (RG), tendo como objetivo a delimitação dos "efeitos das decisões do Supremo Tribunal Federal em controle difuso de constitucionalidade sobre a coisa julgada formada nas relações tributárias de trato continuado" e também os "limites da coisa julgada em matéria tributária, notadamente diante de julgamento, em controle concentrado pelo Supremo Tribunal Federal, que declara a constitucionalidade de tributo anteriormente considerado inconstitucional, na via do controle incidental, por decisão transitada em julgado".

A decisão dos ministros de maneira sucinta, definiu o cancelamento de decisões definitivas (transitadas em julgado) a partir da mudança de entendimento da corte em questões tributárias. No atual entendimento, se um contribuinte foi autorizado pela Justiça a deixar de pagar um imposto, mas, tempos depois, o STF entender que a cobrança é devida, ele perderá o direito e deverá fazer. Ainda que de maneira não absolutamente clara a corte definiu por seis votos a cinco, que, em tais situações, não deve haver modulação de efeitos. Dessa maneira, a Receita Federal poderia cobrar o tributo a partir da publicação da ata de julgamento do STF que permitiu a cobrança.


O texto da decisão trouxe novas dúvidas e obviamente, críticas massivas da comunidade jurídica:

"1. As decisões do STF em controle incidental de constitucionalidade, anteriores à instituição do regime de repercussão geral, não impactam automaticamente a coisa julgada que se tenha formado, mesmo nas relações jurídicas tributárias de trato sucessivo. 2. Já as decisões proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado nas referidas relações, respeitadas a irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena ou a anterioridade nonagesimal, conforme a natureza do tributo."

Obviamente que os impactos decorrentes da decisão em matéria tributária são devastadores não só para os contribuintes afetados, mas para todo o sistema judiciário do país. A possibilidade de reverter ou anular decisões já transitadas em julgado afeta diretamente o princípio basilar que norteia a segurança jurídica do país: a coisa julgada. Com previsão expressa no artigo 5º inciso XXXVI da Constituição da República Federativa do Brasil, o texto diz: “A Lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.” O termo “coisa julgada” está diretamente conectado com a sentença judicial, quando esta não admite mais a interposição de qualquer recurso que permita a alteração do objeto da sentença ou acordão. O próprio Código de Processo Civil em 2015 trouxe em seu Art. 502 a clara definição: “Denomina-se coisa julgada material a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso.” Ao aliar o preceito constitucional com a definição claramente especificada na norma processual civil, não existe dúvida da notória proibição de mutar decisões de mérito não mais passíveis de recurso.

Se o conceito de coisa julgada é inequívoco assim como sua proteção constitucional é notória, será que a decisão dos ministros é constitucional? A resposta tem sido unânime em toda a comunidade jurídica. A decisão da Suprema corte rasgou o pilar base da segurança jurídica de nosso ordenamento. A possibilidade de rever decisões já transitadas em julgadas pode trazer a vida uma realidade catastrófica e bastante temerária, vez que pode haver uma relativização da coisa julgada, em todas as searas do direito.

A flexibilização decidida na esfera tributária abre margem para uma nova tendência jurisprudencial, a “modulação da coisa julgada”. A possibilidade de a Suprema Corte reverter decisões não passíveis de recurso permite uma mudança no passado. Sentenças penais podem ser anuladas, indenizações podem ser consideradas indevidas, diretos adquiridos podem ser subtraídos de seus detetores, tudo ao alcance de uma caneta. Pensando na influência política inerente a Suprema Corte, influência essa que não pode ser relativizada uma vez que a indicação dos julgadores não se da por mérito de carreira, mas sim por indicação do presidente da república, a “modulação da coisa julgada” é um instrumento que pode por em risco toda a ordem institucional criada ao longo de décadas de república.

A tentativa de criar uma modulação ou a relativação da coisa julgada não é algo recente. O desejo de mudar o passado através de uma simples decisão sempre esteve presente na Suprema Corte. O ministro Celso de Mello por diversas vezes externalizou essa afirmação dentro de seus votos:


“A pretendida “relativização” da coisa julgada – tese que tenho repudiado em diversos julgamentos (monocráticos) proferidos no Supremo Tribunal Federal ( RE 554.111/RS – RE 594.350/RS - RE 594.892/RS - RE 594.929/RS - RE 595.565/RS, dos quais sou Relator) - provocaria consequências altamente lesivas à estabilidade das relações intersubjetivas, à exigência de certeza e de segurança jurídicas e à preservação do equilíbrio social, valendo destacar , em face da absoluta pertinência de suas observações, a advertência de ARAKEN DE ASSIS (“ Eficácia da Coisa Julgada Inconstitucional ”, “in” Revista Jurídica nº 301/7-29, 12-13 ):

Aberta a janela, sob o pretexto de observar equivalentes princípios da Carta Política, comprometidos pela indiscutibilidade do provimento judicial, não se revela difícil prever que todas as portas se escancararão às iniciativas do vencido. O vírus do relativismo contaminará, fatalmente, todo o sistema judiciário. Nenhum veto, ‘a priori’, barrará o vencido de desafiar e afrontar o resultado precedente de qualquer processo, invocando hipotética ofensa deste ou daquele valor da Constituição. A simples possibilidade de êxito do intento revisionista, sem as peias da rescisória, multiplicará os litígios, nos quais o órgão judiciário de 1º grau decidirá, preliminarmente, se obedece, ou não, ao pronunciamento transitado em julgado do seu Tribunal e até, conforme o caso, do Supremo Tribunal Federal. Tudo, naturalmente justificado pelo respeito obsequioso à Constituição e baseado na volúvel livre convicção do magistrado inferior.”

Entretanto a coisa julgada não é absoluta, o legislador previu a possibilidade de existirem erros notórios e latentes nas decisões judiciais, sendo necessária sua correção para a garantia de decisões justas, assim nasce a ação rescisória. Este é o instrumento legal para rediscutir decisões onde foram ocorridas falhas na prestação jurisdicional.

Mas mesmo com a existência de instrumento próprio para revisar decisões já transitadas e julgadas, a Suprema Corte sumulou o entendimento trazido na Súmula 343:

“Não cabe ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais.

A súmula busca limitar a possibilidade de ingresso com ações rescisórias quando a decisão estiver em harmonia com o entendimento firmado pelas cortes superiores com texto legislativo. Ocorre que a própria Suprema Corte já sedimentou o entendimento de que a súmula 343 é inaplicável em matéria constitucional:

A decisão do Supremo Tribunal Federal declarando a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de preceito normativo não produz a automática reforma ou rescisão das decisões anteriores que tenham adotado entendimento diferente. Para que tal ocorra, será indispensável a interposição de recurso próprio ou, se for o caso, a propositura de ação rescisória própria, nos termos do art. 485 do CPC, observado o respectivo prazo decadencial (CPC, art. 495).

[Tese definida no RE 730.462, rel. min. Teori Zavascki, P, j. 28-5-2015, DJE 177 de 9-9-2015, Tema 733.]


No mesmo sentido:


Não cabe ação rescisória quando o julgado estiver em harmonia com o entendimento firmado pelo Plenário do Supremo à época da formalização do acórdão rescindendo, ainda que ocorra posterior superação do precedente.

[Tese definida no RE 590.809, rel. min. Marco Aurélio, P, j. 22-10-2014, DJE 230 de 24-11-2014, Tema 136.]


Todas essas decisões deixam ainda mais evidente o posicionamento da Suprema Corte quanto a impossibilidade de mutar decisões do passado já transitadas e julgadas que não encontram vícios. Seguindo o entendimento da massiva comunidade jurídica, o que inclui os citados ex-ministros da Suprema Corte, temos um problema: agora nem mesmo o passado é considerado como certo.

Se de fato esse for o novo entendimento do STF, todo o passado jurídico poderá ser alterado com a “modulação da coisa julgada” e toda a segurança jurídica comprometida, mas claro: a gosto do freguês!



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