Os impactos legais da mudança nas classificações de calibres
A mudança na política de armas de fogo no país é um movimento em ascensão que obviamente resulta em impactos na aplicação das sanções penais.
Com a promulgação do decreto presidencial nº 9.847 de 25 de junho de 2019, que resultou na publicação da portaria do comando logístico do exército de nº 1.222 de 12 de agosto de 2019 que alterou a classificação dos calibres permitidos e restritos, desencadeou uma procura em massa do judiciário para revisão de processos em andamento e com transito em julgado.
A portaria incluiu como permitido diversos calibres antes considerados restritos pelo comando logístico do exército:
Essa alteração legislativa impacta diretamente os processos existentes ou com condenação definitiva de posse ou porte ilegal de armas e munições de uso restrito conforme previsão do Art.16 da Lei nº 10.826/2003, passando tal conduta a ser tipificada de maneira menos gravosa pelos art.12(posse irregular) e art.14(porte irregular) de armas de fogo de uso permitido, sendo um claro caso de novatio legis in mellius.
Ocorre a novatio legis in mellius quando a lei posterior, mantendo a incriminação do fato, torna menos gravosa a situação do réu, devendo ser sempre aplicada à sanção mais branda ao acusado, ainda que já decidido por sentença transitado em julgado, entendimento esse expresso no Art. 2º, Parágrafo Único do Código Penal:
Parágrafo Único - A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado
Este entendimento já está sendo aplicado por diversos Tribunais brasileiros:
APELAÇÃO/ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. ATOS INFRACIONAIS ANÁLOGOS AOS CRIMES DE PORTE ILE- GAL DE ARMA DE FOGO DE USO RESTRITO E POSSE DE DRO- GAS PARA CONSUMO PESSOAL (LEIS 10.826/02, ART. 16, CAPUT, E 11.343/06, ART. 28). PROCEDÊNCIA DA REPRESENTAÇÃO. RE- CURSO DO REPRESENTADO.1. PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO. ALTERAÇÃO LEGISLATIVA (DECRETO 9.847/19, ATUA- LIZADO PELA PORTARIA 1.222/19). MODIFICAÇÃO DOS PARÂ- METROS DE AFERIÇÃO E A LISTAGEM DOS CALIBRES NOMI- NAIS DAS ARMAS CONSIDERADAS DE USO RESTRITO E PERMI- TIDO. PISTOLA CALIBRE 9MM. NOVATIO LEGIS IN MELLIUS. ULTRATIVIDADE DA LEI BENÉFICA (CF, ART. 5º, XL, E CP, ART. 2º).2. MEDIDA SOCIOEDUCATIVA. INTERNAÇÃO MAN- TIDA. REITERAÇÃO NA PRÁTICA DE ATOS INFRACIONAIS (ECA, ART. 122, II). 1. Em razão da recente alteração legislativa (De- creto 9.847/19, atualizado pela Portaria 1.222/19), que alterou o parâmetro da pistola calibre 9mm de uso restrito para permitido, é de rigor a aplicação da novatio legis in mellius, devendo-se reclassificar a conduta imposta ao adolescente para o ato infracional análogo a crime descrito no art. 14, caput, da Lei 10.826/03. 2. A aplicação da medida socioeducativa de internação é adequada ao caso, uma vez que respeita suas circunstâncias, a gravidade do agir e a condição do adolescente, por ser a única capaz de alterar o curso desuas práticas infracionais. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. DE OFÍCIO, RECLASSIFICADA A CONDUTA.( APR 0007084-37.2017.8.24.0091 Capital 0007084-37.2017.8.24.0091 julgado em 17/09/2019)
O Decreto 9.847/19 alterou a classificação de diversas armas e munições. Antes do Decreto, eram permitidas armas (munições) de até 407 joules, como as de calibre 38, 22, 25 e 32. Depois do Decreto, são permitidas armas (munições) de até 1.620 joules, incluindo diversas armas que eram de uso restrito, como a 9mm, .40, .44, .44 Magnum, .45 e .357 Magnum. A despeito de o delito ter sido praticado na vigência da norma anterior, trata-se de no- vatio legis in mellius, o que autoriza a retroatividade de seus efeitos para favorecer o réu, nos termos dos art. 2º, parágrafo único, do CP, e art. 5º, XL, da CF/88. Assim, tendo o calibre 9mm passado a fazer parte da lista de armamentos permitidos, é de rigor a desclassificação da conduta do apelante para aquela prevista no art. 12 da Lei 10.826/03, uma vez que os artefatos foram localizados no interior de sua residência. (Apelação Criminal: APR 10027140054738001 MG julgado em 24/09/2019)
As alterações em questão repercutirão em milhares de processos por todo o Brasil, sendo atribuição do juízo das execuções a análise dos casos em fase de cumprimento de pena com transito em julgado.
Como importante ressalva à alteração legislativa, as condutas descritas no parágrafo único do art.16 do Estatuto do desarmamento continuam em vigor, dessa forma ainda quem exista mudança na classificação dos calibres determinados como permitidos, armas dessa categoria podem implicar na modalidade hedionda do crime caso tenham seu sinal de identificação alterado ou suprimido.
Aparentemente não existe controvérsia quanto a natureza jurídica de novatio legis in mellius do conteúdo da portaria 1.222 de 12 de agosto de 2019 do comando logístico do exército, entretanto o tema ainda não alcançou as cortes superiores para um parecer definitivo, e se tratando de Brasil tudo é possível, fazendo-se necessário o acompanhamento da jurisprudência em questão para finalmente ermos um posicionamento definitivo