Álcool e Direção – O mito do dolo eventual
Quando o tema álcool e direção são abordados, diversas teorias são despejadas de maneira desenfreada ao longo de doutrinas e jurisprudências de norte a sul do Brasil.
A legislação brasileira adotou a teoria do perigo abstrato para a redação do artigo 306 do CTB:
Art. 306. Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência: Penas - detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
Penas - detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
O simples fato de dirigir alcoolizado já resulta na incidência de fato típico previamente estabelecido em lei, não exigindo assim a lesão de um bem jurídico tutelado para a existência de um crime, basta expor a risco os bens legalmente tutelados para a existência do crime.
Analisando dessa forma é possível concluir que o mero fato de expor a sociedade a risco, conduzindo veículo automotor sob o efeito de substâncias psicoativo (álcool ou drogas) por si só já resulta em fato típico com sanção criminal. Por mais que o condutor não tenha pretensão de causar dano pela conduta de dirigir sob o efeito de qualquer substância, a teoria do perigo abstrato torna desnecessária a vontade consciente do autor na prática da conduta.
Pela teoria finalista, só se constitui como conduta ilícita aquela que for: típica antijurídica e culpável. Para esta teoria deve se considerar a vontade do agente em praticar a conduta delituosa, assim só existe conduta se existir vontade do agente.
Tal raciocínio abre margem para discussão da existência de outro fato corriqueiro em decorrência da combinação perigosa entre volante e substâncias que alterem a capacidade motora do condutor: O dolo eventual
Danos causados a qualquer bem jurídico, se forem resultados da combinação da conduta de estar conduzindo veículo sobre o efeito de qualquer substância, da origem ao dolo eventual. Pensamento que é fruto da responsabilidade objetiva do infrator por, sabendo dos riscos que pode causar a vida, integridade física e patrimônio de outrem assume a eventual responsabilidade por seus atos.
A natureza do dolo eventual é a essência da vontade ou consciência de se assumir um risco de praticar uma conduta ilícita. Esse pensamento presume que todo homem médio sabe dos riscos que suas condutas podem oferecer a terceiros, estando ele consciente desses riscos, o mesmo assume o resultado de sua conduta.
O dolo eventual torna-se uma forma de intimidar aqueles que sabendo do risco decidem praticar condutas ilícitas. Foi o método encontrado pelo judiciário pra sanar a falta de comprometimento do legislativo em criar normas efetivas e constitucionais sobre o tema, tal qual a falta de comprometimento do executivo em fiscalizar de forma eficaz as práticas em questão.
Quando o poder judiciário resolve solucionar problemas oriundos dos demais poderes surge às ilegalidades.
O infrator que conduz seu veículo sob o efeito de álcool tem que saber da ilegalidade que esta cometendo, entretanto com toda certeza não deseja produzir um resultado criminoso. Para a legislação atual o simples fato de conduzir veículo alcoolizado já expõe a sociedade a risco, sendo esse crime punível com detenção de 6 meses a 3 anos e multa.
A crítica ao entendimento das cortes superiores se faz natural, a punição em questão se da antes de qualquer dano ocorrer. È um evidente crime de mera conduta, ideologia de um estado intervencionista que idealiza a punição antes mesmo do dano ocorrer. Visto que não necessariamente pode existir dano a qualquer bem jurídico tutelado, tal qual sem qualquer resultado atingido, o estado pune aquele que eventualmente venha a prejudicar terceiro.
É obvio que a punição atribuída à conduta é desproporcional, uma simples punição administrativa bastaria para atingir o infrator. Detenção de 6 meses a 3 anos para quem eventualmente poderia cometer fato típico não se faz proporcional.
A ideia da prevenção levada ao extremo vai de encontro à teoria finalista do crime, se pune o agente independente da vontade de praticar o delito, se previne o resulta mesmo não tendo ocorrido.
O Brasil caminha cada dia mais para o direito “Minority Report”[1], onde se tira do cidadão o direito de apenas responder caso cause um dano a terceiros, o dolo eventual aliado ao crime de mera conduta nada mais são que o resultado de um estado fraco, que não consegue conscientizar sua população sobre condutas nocivas, tal qual não tem a capacidade de fiscalizar de maneira efetiva as condutas punidas de maneira administrativa.
O dolo eventual é uma resposta estatal para os casos de acidente envolvendo motoristas alcoolizados, que ao invés de criar campanhas de conscientização sobre os riscos da embriaguez ao volante, tal qual efetuar constante fiscalização de motoristas infratores, pune aqueles que de maneira culposa atingiram resultado nocivo.
Assumir o risco de produzir um resultado é algo presente na conduta humana, quando se inicia um roubo com o emprego de arma de fogo é evidente que o resulto da conduta pode evoluir para um latrocínio, sendo esse um risco assumido pelo agente da conduta, estando assim formado o dolo eventual. É desproporcional comprar o risco do resultado de tal conduta ao motorista que após ingerir bebida alcoólica provoca resultado morte.
No momento que se colocou atrás do volante, o resultado pretendido pelo condutor alcoolizado é chegar a seu destino, não sendo proporcional considerar que o mesmo assume o risco de retirar uma vida, esse não é o resultado pretendido para o homem médio.
O judiciário sempre apresenta surpresas quanto ao tema:
JURI. DELITO DE TRÂNSITO. DOLO EVENTUAL. CONSENTE PARA A OCORRENCIA DO RESULTADO DANOSO QUEM SE EMBRIAGA E PASSA A DIRIGIR UM VEICULO, POSTO QUE TEM CONHECIMENTO DE QUE A PERCEPCAO DA REALIDADE NAO LHE PERMITE MANTER O TOTAL CONTROLE DE SEUS ATOS E TAMBEM DA OCORRENCIA DA DIMINUICAO DE REFLEXOS. ASSIM, NAO E MANIFESTAMENTE CONTRARIA A PROVA DOS AUTOS A DECISAO DO CONSELHO DE SENTENCA QUE REJEITA A TESE DEFENSIVA DA DESCLASSIFICACAO DO DELITO PARA A FORMA CULPOSA. (Apelação Crime Nº 696143429, Quarta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Armando Bertanha de Souza Leal, Julgado em 23/10/1996)(TJ-RS - ACR: 696143429 RS, Relator: Luiz Armando Bertanha de Souza Leal, Data de Julgamento: 23/10/1996, Quarta Câmara Criminal, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia)
Em sentido oposto:
PENAL E PROCESSO PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. ATROPELAMENTO MORTE. CONDUTOR EMBRIAGADO. RÉU DENUNCIADO POR HOMICÍDIO DOLOSO. AUSÊNCIA DE DOLO EVENTUAL. DESCLASSIFICAÇÃO MANTIDA. 1. Tratando-se de homicídio cometido por condutor de veículo automotor embriagado, somente incide a competência do júri quando demonstrada a embriaguez preordenada, ou seja, que o agente se embebedou para cometer o crime. 2. Não havendo prova nos autos que o réu se embebedou para praticar o ilícito ou assumiu o risco de produzi-lo, afasta-se a tese de dolo eventual. 3. Recurso conhecido e desprovido.(RSE: 20131210027262, Relator: JOÃO BATISTA TEIXEIRA, Data de Julgamento: 03/12/2015, 3ª Turma Criminal, Data de Publicação: Publicado no DJE: 10/12/2015. Pág.: 94)
A verdade é que se torna impossível um julgador, seja ele um juiz singular ou um conselho de sentença provar qual foi à vontade real do Réu no momento dos fatos, sendo necessário nesses casos ser aplicada a tese mais vantajosa para o réu: “in dubio pro reo”.
Como medida de proporcionalidade o entendimento de dolo eventual se faz extremo e exagerado, não se pode concluir que o Réu tinha consciência do resultado que poderia ser alcançado, tal qual é evidente que esse não buscava lesão a qualquer bem jurídico.
No pensamento do mestre Noronha (2009, p. 135) conceitua a espécie dolo eventual como:
“No dolo eventual, o sujeito prevê o resultado e, embora não o queira propriamente atingi-lo, pouco se importa com a sua ocorrência (“eu não quero, mas se acontecer, para mim tudo bem, não é por causa deste risco que vou parar de praticar minha conduta – não quero, mas também não me importo com a sua ocorrência”).[2]
Veja, o ponto fundamental na conduta do dolo eventual se faz pela não preocupação com o resultado. Pouco importa se o resultado será alcançado ou não, a tragédia não irá impedir o agente de efetuar a conduta.
Assim, a pergunta que todo julgador deveria fazer nesses casos é: Caso o agente obtivesse conhecimento do resultado, ele teria seguindo com a conduta? Se a resposta for positiva esta evidentemente criada à situação do dolo eventual, se negativa deve-se entender como crime culposo.
A tese a qual se entende como justa é a evidente culpa consciente, essa que se pode prever o resultado, entretanto se espera sinceramente que não o alcance. Resultados catastróficos podem ser provisionados em qualquer conduta, erros podem ocorrer mesmo quando se tem as melhores das intenções. Culpar acusado de maneira dolosa por fato típico gerado por uma evidente imprudência, negligência ou imperícia, mesmo quando o resulto era possível de se imaginar é notoriamente ilegal.
Vale dessa forma análise rápida e intuitiva do parágrafo único do inciso II do artigo 18 do Código Penal:
Art. 18, II, Parágrafo único - Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente.
A previsão do artigo supracitado é clara: as punições e sanções só podem existir quando praticadas de maneira dolosa, salvo previsão legal. O embasamento legal para o notório absurdo da aplicação do dolo eventual em crimes de trânsito se fundamenta única e simplesmente no inciso I do mesmo artigo 18:
I - doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo.
Concluí-se assim que não se pode presumir que o motorista ao assumir o volante sob o efeito de bebida alcoólica tem a consciência de que pode alcançar resultado diverso alem de chegar ao seu destino, à consciência de que algo ruim pode acontecer é algo natural do ser humano, sendo essa consequência indesejada, devendo ser encarada como culpa consciente e não como dolo eventual.
[1] 2002, 20th Century Fox,”Minoroty Report- A Nova Lei”
[2] NORONHA, Edgard. Direito Penal: parte geral. 30.ed. São Paulo: Saraiva, 2000. p.129 – 139. v.1